quinta-feira, 7 de junho de 2012

Continência a Eanes







Quando cumpria o seu segundo mandato, Ramalho Eanes viu ser-lhe apresentada pelo Governo uma lei especialmente congeminada contra si.

O texto impedia que o vencimento do Chefe do Estado fosse «acumulado com quaisquer pensões de reforma ou de sobrevivência» públicas que viesse a receber.


Sem hesitar, o visado promulgou-o, impedindo-se de auferir a aposentação de militar para a qual descontara durante toda a carreira.


O desconforto de tamanha injustiça levou-o, mais tarde, a entregar o caso aos tribunais que, há pouco, se pronunciaram a seu favor.


Como consequência, foram-lhe disponibilizadas as importâncias não pagas durante catorze anos, com retroactivos, num total de um milhão e trezentos mil euros.


Sem de novo hesitar, o beneficiado decidiu, porém, prescindir do benefício, que o não era pois tratava-se do cumprimento de direitos escamoteados - e não aceitou o dinheiro.


Num país dobrado à pedincha, ao suborno, à corrupção, ao embuste, à traficância, à ganância, Ramalho Eanes ergueu-se e, altivo, desferiu uma esplendorosa bofetada de luva branca no videirismo, no arranjismo que o imergem, nos imergem por todos os lados.


As pessoas de bem logo o olharam empolgadas: o seu gesto era-lhes uma luz de conforto, de ânimo em altura de extrema pungência cívica, de dolorosíssimo abandono social.


Antes dele só Natália Correia havia tido comportamento afim, quando se negou a subscrever um pedido de pensão por mérito intelectual que a secretaria da Cultura (sob a responsabilidade de Pedro Santana Lopes) acordara, ante a difícil situação económica da escritora, atribuir-lhe. «Não, não peço. Se o Estado português entender que a mereço», justificar-se-ia, «agradeço-a e aceito-a.


Mas pedi-la, não. Nunca!»


O silêncio caído sobre o gesto de Eanes (deveria, pelo seu simbolismo, ter aberto telejornais e primeiras páginas de periódicos) explica-se pela nossa recalcada má consciência que não suporta, de tão hipócrita, o espelho de semelhantes comportamentos.


“A política tem de ser feita respeitando uma moral, a moral da responsabilidade e, se possível, a moral da convicção”, dirá. Torna-se indispensável “preservar alguns dos valores de outrora, das utopias de outrora”.


Quem o conhece não se surpreende com a sua decisão, pois as questões da honra, da integridade, foram-lhe sempre inamovíveis. Por elas, solitário e inteiro, se empenha, se joga, se acrescenta- acrescentando os outros.


“Senti a marginalização e tentei viver”, confidenciará, “fora dela. Reagi como tímido, liderando”. O acto do antigo Presidente («cujo carácter e probidade sobrelevam a calamidade moral que por aí se tornou comum», como escreveu numa das suas notáveis crónicas Baptista-Bastos) ganha repercussões salvíficas da nossa corrompida, pervertida ética.


Com a sua atitude, Eanes (que recusara já o bastão de Marechal) preservou um nível de dignidade decisivo para continuarmos a respeitar-nos, a acreditar-nos - condição imprescindível ao futuro dos que persistem em ser decentes.


Autor: Fernando Dacosta




Nota: Já escrevi algures no Expresso um comentário sobre Ramalho Eanes, mas sinto-me na obrigação de dizer algo mais e que me foi contado por mais que uma pessoa.

Disseram-me que perante as dificuldades da Presidência teve de vender uma casa de férias na Costa de Caparica e ainda que chegou a mandar virar dois fatos, razão pela qual um empresário do Norte lhe ofereceu tecido para dois. Quando necessitava de um conselho convidava as pessoas para depois do jantar, aos quais era servido um chá por não haver verba para o jantar. O policia de guarda em vez de estar na rua de plantão ao fio e chuva mandou colocá-lo no átrio e arranjou uma cadeira para ele não estar de pé. Consta que também lhe ofereceram Ações da SLN-BPN, mas recusou.

Texto de Fernando Dacosta






8 comentários:

  1. É bom saber que há Homens (com H grande) em Portugal!

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  2. É curioso que pessoas com este perfil "vertical", uma vida inteira fortemente hierarquizada, proveniente de um código de honra militar, pouco atreito a meias verdades e aldrabices, tenha estado tanto tempo nos meandros da política. Foi ele que comandou o contra-golpe que anulou a revolta da esquerda radical em 25 de Novembro de 1975, evidenciando já a sua veia política.

    Se não me falha a memória, a coisa correu mal com o PNR, ao que sei, com a tal moção de censura que mandou abaixo o 1º governo minoritário do PSD em que Cavaco já era 1º ministro. A partir daí o PNR acabou e Ramalho Eanes abalou da vida política. 10 aninhos nos meandros, já não foi mau. Deve ter levado muita porrada...

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    1. Só uma correção Tiago, o nome do partido não era PNR e sim PRD.

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  3. Podemos acrescentar ao texto do Dacosta, que no Museu da Presidência, a maior parte das ofertas que lá constam feitas aos presidentes, são da época Eanes. Do tempo do Mário Soares, ou há poucas ou nenhumas(deve tê-las levado para a Fundação).Nunca vi a C. Social falar disso.E até digo mais, pois foi presenciado por mim e ninguém me contou: certo dia o Presidente Soares estava no Porto (eu acompanhava a comitiva, porque na época era jornalista, num diário da cidade) e íamos a caminho do Palácio da Bolsa. O presidente entrou numa galeria de arte e esteve durante uns minutos a ver mobiliário, pintura, etc. Eu também entrei porque era amiga do dono da galeria e ele veio cumprimentar-me. Quando já todos estavam em marcha e eu a despedir-me à pressa, entrou novamente um dos acólitos de Soares e cheio de grandessissima lata(não tem outro nome), disse ao galerista: o presidente gostou muito daquele quadro (e apontou), quando posso vir buscar a oferta? Ao que o galerista retorquiu:informe o sr presidente que o quadro que ele tanto gostou custa 12.000 contos e por ser para ele faço 11.800. Quando o "pequenitates" saiu, o meu amigo virou-se para mim e fez um manguito. Mais tarde disseram-me que era assim que o presidente conseguia muitas "ofertas". Fiz na altura um pequeno texto de escárneo e maldizer: "Breve visita do rei Soares e seu séquito à cidade Invicta", mas nunca me deixaram publicar.

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    1. Maria,

      Socialismo de boca cheia! Uma vez assisti a uma inauguração de uma estátua de Mário Soares no campo 24 de agosto, Porto. Ainda era criança e lembro de a minha mãe ter falado nesse dia, este senhor já esteve preso, desde essa altura que não gosto dele e hoje sei bem o porquê.

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  4. Pelo que sei, Ramalho Eanes praticamente não usufrui dos direitos a apoio da Presidência na sua vida. Prescinde de quase tudo em relação a apoio à manutenção da sua casa (Sampaio mandou restaurar um palácio) e outras despesas e pede apenas de vez em quando para que o seu carpinteiro possa executar alguns trabalhos nas oficinas da Presidência. Soares e Sampaio (Sampaio passa despercebido mas não é nenhum santo, o filho e a filha arranjaram grandes tachos à nossa custa) são bem diferentes.

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  5. Eis pois um comportamento que contrasta diametralmente com outros comportamentos de outros políticos nomradamente os que usufruem pensões acumuladas fruto do corporativismo que eles mesmo criaram.
    Cavaco, Freitas, M. Mendes, Â. Correia, Melancia, Soares e tantos outros estão a milhas do carácter de Eanes.

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