terça-feira, 26 de junho de 2012

Estranhos tempos

Opinião de José Gomes Ferreira - Subdiretor de Informação SIC 

Nunca esperei viver num tempo em que Wall Street e a City tivessem poder suficiente para orientar a opinião pública do mundo ocidental, desenvolvido, a seu favor, depois de terem inquinado o mundo com uma desregulação quase completa da finança. Mas é o que está acontecer.


Milhões de cidadãos na Europa e nos Estados Unidos estão a ser levados a tomar posições que favorecem objectivamente os mercados financeiros e, em particular, os agentes mais gananciosos da especulação, que em lugar de serem punidos pelos graves erros que cometeram estão a ser beneficiados, em prejuízo do cidadão trabalhador e contribuinte. Em especial, alguma esquerda, a área política que sempre defendeu o trabalho honesto como modo de vida e a solidariedade do estado para quem realmente precisa, está a contribuir para o contrário do que apregoa.


A influente revista The Economist, publicação com sede em Londres, crítica declarada do projecto do Euro desde o seu início, volta esta semana à carga contra a senhora Merkel, com uma capa muito sugestiva. Um desenho de um navio de mercadorias com o nome de Economia Mundial afunda-se em pleno oceano enquanto alguém grita da torre de comando – Podemos ligar agora os motores, senhora Merkel?


No artigo que resume o tema de capa, o articulista que nunca assina é muito claro – apenas a chanceler alemã tem a chave para recuperar a economia mundial e não está a querer usá-la.


A tese é a mesma de sempre – Berlim tem de mudar o foco da austeridade para o crescimento económico. A mesma conversa da Administração Americana e de todos os investidores, jornalistas e analistas que, do outro lado do Atlântico ou do Canal da Mancha criticam a Europa do Euro. Os mesmos que nunca viram a crise do sub-prime a aproximar-se e a financeirização da economia ocidental a dar cabo dessa mesma economia, a empurrar as empresas industriais para outras zonas do globo e a deixar um rasto de dívida insustentável em todos os recantos da nossa civilização.


Sejamos claros. Defender mais gastos orçamentais para estimular a economia é defender a aposta na continuidade de uma procura interna baseada em dinheiro que o países não têm, que a economia não gera, que tem pouca ou nenhuma utilidade económica porque não é investimento orientado para uma procura espontânea mas sim induzida, logo insustentável e que, em rigor, vai aumentar ainda mais a dívida externa. Vai aumentar ainda mais o risco da banca, do Estado, das empresas em geral. Vai aumentar as taxas, e o montante absoluto de juros efetivamente pagos a quem nos empresta o dinheiro.



Esta formulação é válida para Portugal, para Espanha, para tália, para a França, para A Bélgica, para a Holanda – sim para a aparentemente rica Holanda, também altamente endividada – para o reino Unido e para os Estados Unidos.

O que Angela Merkel está a querer fazer, em larga escala, é cortar a dependência viciosa e fatal das economias em que vivemos em relação aos grandes bancos que nos intoxicaram de crédito. (Sim, os banqueiros fizeram o que os políticos lhes permitiram, ou lhes pediram, e por isso foram recompensados. Aliás, a recompensa surge muito frequentemente sob a forma de cargos nos governos, na banca internacional, nos governos outra vez, na banca… etc. Neste dossier, o expoente máximo é mesmo Washington).


O que Angela Merkel quer fazer é proteger o chefe de família trabalhador, cumpridor, pagador de impostos, sóbrio solidário e pouco endividado – o mesmo que as esquerdas juram defender.


Como escrevemos no artigo anterior (A Tragédia a acontecer e quase ninguém a ver…de novo), os mesmos financeiros que agora se guiam por algoritmos para continuar a ganhar com a queda dos devedores, depois de terem ganho biliões com a sua subida vertiginosa e alavancada, os mesmos que pulavam de conferência em conferência para denegrir o papel do Estado e exigir a sua saída da economia, são os mesmos que chamam o estado para resolver os problemas dos seus bancos quando a concessão irresponsável de crédito corre mal.
A reacção em forte alta dos mercados financeiros, esta segunda-feira de manhã na primeira sessão após o resgate público anunciado no Sábado aos bancos espanhóis é bem a prova desta hipocrisia. Num ápice, um problema de 100 mil milhões de euros que estava nos balanços dos bancos espanhóis passou para os bolsos dos contribuintes de Espanha. E passará para os bolsos dos alemães se o país vizinho não puder pagar, situação que não é improvável. Mas os mercados financeiros aplaudiram – têm o problema dos senhor que neles mandam – os sacrossantos accionistas – resolvido.


Mas como dissemos, o problema apenas transitou de uns protagonistas para outros, mantém-se em Espanha e em, última instância, na Zona Euro. E por isso, os juros da dívida pública espanhola, que inicialmente desceram levados pela mesma euforia, já estão de novo a subir.


Parar com a alavancagem insustentável dos Estados, da banca, das empresas e das famílias é o objectivo de Berlim. Devia ser o objectivo de todos nós. Devíamos deixar de ser reféns de um sector que têm um objectivo nobre – disponibilizar às empresas dinheiro para desenvolverem negócios sustentáveis, que foi poupado por quem não sabe aplicá-lo em larga escala noutras actividades – mas que perdeu esse objectivo de vista e se transformou em financiador de ineficiências públicas e privadas para seu próprio benefício.


Continuar com programas de estímulo orçamental com recurso a crédito para financiar actividades que não têm procura natural nem são sustentáveis; deixar de fazer a mudança estrutural da economia de serviços de ficção em que nos transformámos; impedir que nos viremos para a indústria, para a produção de bens concretos mas que dão menos lucro a curto prazo; isso sim, é continuar o desastre económico em que temos vivido.


Mas é o que quer Wall Street e a City: que os contribuintes europeus paguem os desmandos dos bancos em risco; que os contribuintes europeus paguem as dívidas dos países que por culpa própria se endividaram; e que os governos europeus dos países que ainda não se endividaram perigosamente, como a Alemanha, gastem mais e se endividem ainda mais.


Assim se manteria o nível de rendimentos da City e de Wall Street. E assim se evitaria que a armadilha sobre a qual os maiores bancos de investimento do mundo estão sentados, o mercado OTC – Over the counter – ou mercado não regulamentado de derivados, fosse desactivada. Pois essa armadilha vai ter de ser desactivada. É um brinquedo demasiado caro e perigoso para o Mundo.


E aqui está como uma inocente defesa de mais investimento pelos Governos para evitar o agravamento da crise e dos despedimentos, uma simples crítica à austeridade e aos seus efeitos, se está a transformar na mais forte estratégia de defesa dos especuladores dos mercados financeiros.


Para quem pensa que não há esperança na austeridade, leia bem o boletim desta segunda-feira do Instituto Nacional de Estatística sobre o Comércio Internacional de Portugal:


Nos primeiros quatro meses do ano, a taxa de cobertura das importações pelas exportações já vai em 81,8 por cento! Há quantas décadas não acontecia isto?


E se retirarmos os combustíveis e lubrificantes da conta – a dependência do petróleo, o saldo da balança comercial já é positivo em 150 milhões de euros só nestes meses!


De facto, o que estava a matar a nossa economia não era só o défice público – eram também os centros comerciais!


É para acabar com esta notável mudança da nossa economia que os críticos da Austeridade lutam? É para continuar com a irresponsável aplicação de dinheiro e favorecimento injustificado de quem o empresta?


Estranhos tempos estes em que vivemos… em que a líder de um país que trabalhou e poupou enquanto todos os outros gastavam e se divertiam é acusada de estar a afundar a economia mundial!


Estranhos tempos estes em que Angela Merkel age seguindo os princípios da esquerda para defender os interesses das populações e é apontada como fascista, enquanto as esquerdas acabam por defender os ilegítimos interesses do neo-liberalismo que comanda a alta finança e criou a sociedade mais desigual de que há memória, concentrando a riqueza em um por cento e deixando as dívidas nas mãos de 99 por cento dos cidadãos!




3 comentários:

  1. É pena que se baralhem aqui as ideias. Será para justificar a miséria implantada no país? Não se nota outro interesse quando existem outros métodos de atingir o mesmo fim aqui justamente defendido, mas encobertos. Propositadamente?

    Além disso, os hábitos sãos foram assassinados pelos políticos para fomentar a gastança desenfreada e dar a ilusão de riqueza, sistema implantado pelo Cavaco, a não esquecer. Um pequeno exemplo seria ter educado o povo, ensinando já na escola primária – como se faz nos países menos endividados – a defender-se da publicidade e aquilo a que eles chamam contabilidade doméstica. Não se tem feito exactamente o contrário? Muitos endividamentos privados desenfreados teriam sido evitados.

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  2. Sim... Viveu-se um grande equivoco e foi geral, mas julgo que agora todos fomos acordados para a realidade, mas ainda vai haver muita turbulência na civilização ocidental. Quanto maior o desvio maior o reajuste, é a lei da vida. Mas é uma oportunidade para todos aprendermos e sairmos mais fortes.

    abraço.

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  3. Mas a Vida é daqui para a frente!... os erros passados serão produto de saturadas análises, sempre inconclusivas. Há pelo meio de tudo isto uma componente fortissima: a natureza humana, que é uma variável não mensuravel e que a qq momento derruba- derrubará- todas as teorias economicas existentes ou a existir...e o que no fundo interessa, é mesmo a sobrevivencia!

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